Editorial

Flexibilizar requer cuidados

Diz-se do brasileiro que a memória é curta. Embora possa não ser uma verdade absoluta, fica difícil não dar razão a quem usa dessa máxima quando se observa o proceder da sociedade diante de determinados temas. Um dos exemplos é a abertura de mais uma discussão visando flexibilizar (novamente) a Lei Complementar 14.736, de 2013, vigente no Rio Grande do Sul. Mais conhecida como Lei Kiss, a norma fixa regras e exigências relacionadas à segurança, prevenção e proteção contra incêndios em prédios e áreas de risco. Texto este construído a partir de uma tragédia cujas marcas profundas pareciam ser capazes de refutar a ideia de esquecimento de tamanho trauma. Mas parece não ser bem assim.

Apresentado pelo governo, o Projeto de Lei Complementar (PLC) 182/2022 tem entre seus objetivos acabar com a obrigatoriedade de alvarás para 991 tipos de empreendimentos. O que viria a ser, basicamente, um processo de simplificação, dispensando etapas no licenciamento e de alguma forma livrando empreendedores da burocracia que muitas vezes trava ou atrasa a abertura de negócios. No entanto, ainda que seja essa a (justa) intenção, a questão que também precisa ser debatida é o quanto a Lei Kiss vem sendo alterada (ou rediscutida para que seja mais flexível) ao longo destes nove anos. Algo que chama atenção porque, como há de lembrar cada gaúcho que acompanhou as imagens chocantes do fogo na boate, as sequelas de quem sobreviveu e o drama de amigos e familiares das vítimas, talvez nunca se tenha examinado tanto um tema, uma proposta de legislação, como ocorreu com a resultante da desgraça de Santa Maria.

Não à toa, representantes do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS) e da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria convergem no sentido de estar havendo descaracterização da Lei Kiss. Ou seja, um texto elaborado com objetivo de ser exemplar e minimizar ao máximo os riscos de uma nova catástrofe como a que matou 242 pessoas, estaria passando, pouco a pouco, por uma flexibilização baseada em princípios como a boa-fé e a desburocratização.

Naturalmente, toda análise e alteração de legislação envolve aspectos técnicos e políticos que não podem ser descartados ou menosprezados. Muitos deles podem ser válidos, inclusive. Contudo, há uma lógica presente no Brasil que costuma se repetir e está presente no episódio Kiss: primeiramente, pouco ou nenhum controle; depois, a dificuldade de punir; na sequência, com a porta arrombada, a tranca de ferro da lei exemplar; e, por fim, conforme o tempo passa, o afrouxamento. Tomada que esse ciclo não se feche com abrandamentos e novas tragédias.​

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